A indústria automotiva mundial encontra-se diante de dois modelos distintos de desenvolvimento. Montadoras tradicionais como Ford e Stellantis seguem o APQP (Advanced Product Quality Planning), metodologia estruturada e consolidada ao longo de décadas, que privilegia robustez, confiabilidade e prevenção de falhas. Em contraste, fabricantes chineses como BYD, GWM e Chery adotam um modelo ágil, iterativo e verticalizado, baseado em ciclos mais curtos de desenvolvimento e maior flexibilidade para ajustes.
Este artigo não tem caráter crítico, mas analítico. O objetivo é examinar vantagens, riscos e implicações de cada abordagem, reconhecendo que apenas o tempo poderá consolidar qual delas se tornará predominante no setor.
O Modelo APQP: Robustez e Prevenção
O APQP organiza o desenvolvimento em cinco fases formais — desde o planejamento até a validação final e produção em série. Esse rigor metodológico demanda ciclos de quatro a cinco anos, altos investimentos iniciais e ampla participação de fornecedores.
O benefício direto desse processo está na redução significativa de riscos. Ao privilegiar testes extensivos, análises de risco (como FMEAs) e homologações detalhadas, o APQP evita retrabalhos de alto custo após o início da produção. Em termos de posicionamento, contribui para a construção de uma confiança duradoura na marca e para a preservação do valor residual dos veículos, fatores decisivos em mercados maduros como Europa e Estados Unidos.
Essa robustez, no entanto, cobra um preço: maior tempo de lançamento e menos flexibilidade para ajustes durante o ciclo. Ainda assim, para marcas estabelecidas, essa metodologia reforça a perenidade e sustenta a reputação ao longo de décadas.
O Modelo Chinês Ágil: Velocidade com Riscos Potenciais
Já o modelo chinês se apoia em três pilares principais: integração vertical, prototipagem rápida e lançamentos em ciclos reduzidos, geralmente de 18 a 24 meses. Essa velocidade permite reagir rapidamente a mudanças de mercado e incorporar novas tecnologias com agilidade.
Porém, a aceleração do processo carrega riscos que precisam ser monitorados. Em setembro de 2024, por exemplo, a BYD convocou o recall de cerca de 97 mil unidades dos modelos Dolphin e Yuan Plus, devido a risco associado ao sistema de direção elétrica. Embora recalls sejam comuns em toda a indústria, o episódio ilustra como ciclos mais curtos podem aumentar a exposição a ajustes posteriores, com custos elevados para correção.
Outro aspecto relevante é a desvalorização dos veículos. O BYD Dolphin, lançado no Brasil em 2023, apresentou uma queda de 9,63% em valor no período de um ano, segundo dados divulgados pela revista Quatro Rodas. Essa desvalorização é superior à média de veículos de marcas tradicionais na mesma faixa de preço, refletindo a percepção do consumidor sobre risco, confiabilidade e durabilidade.
Além disso, ainda que os custos iniciais de desenvolvimento sejam menores, modificações em ferramentais e projetos após o início da produção podem se tornar mais caras do que os investimentos preventivos típicos do APQP. Some-se a isso o risco de desgaste da imagem da marca caso correções frequentes se tornem parte da experiência de mercado.
Análise Comparativa
O contraste entre os dois modelos evidencia um dilema estratégico. O APQP exige maior investimento de tempo e capital, mas entrega confiabilidade, estabilidade de valor e fortalecimento da marca. O modelo chinês, ao privilegiar a agilidade, garante competitividade imediata, mas expõe o fabricante a riscos de recall, maior desvalorização e custos ocultos de retrabalho.
Não se trata de condenar uma abordagem em detrimento da outra, mas de reconhecer que ambas refletem escolhas distintas de gestão da inovação. O Ocidente aposta em prevenção e confiança consolidada, enquanto a China aposta em velocidade e adaptação contínua.
O futuro da indústria automotiva provavelmente passará por uma convergência entre os dois modelos. A robustez do APQP continuará sendo vital para mercados regulados e consumidores exigentes, enquanto a agilidade chinesa mostrará valor em ciclos tecnológicos acelerados como os de veículos elétricos e conectados.
O desafio para as montadoras chinesas será equilibrar velocidade com confiabilidade, de modo a reduzir riscos de recall e atenuar a desvalorização, garantindo perenidade de marca. Já para as ocidentais, o desafio será incorporar mais agilidade sem abrir mão da prevenção que sustenta sua reputação.
Essa análise não representa uma crítica, mas um retrato de tendências em consolidação. O tempo mostrará se o modelo ágil chinês conseguirá se firmar com consistência global ou se os riscos de retrabalho e depreciação irão reforçar a relevância dos métodos mais estruturados.